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Estamos vivendo um momento sem precedentes na história. Por maiores e mais trágicas que tenham sido as calamidades vividas pela humanidade até hoje, nenhuma crise sanitária havia afetado, em escala global e ao mesmo tempo, aspectos sociais, econômicos, políticos e ambientais, de forma tão expressiva como a pandemia de coronavírus (Covid-19) tem feito. Como será, então, o mundo pós-crise? Como ficará o Brasil depois dessa grande intempérie?
Na verdade, ninguém pode dar ainda respostas definitivas e certeiras para tais perguntas. Mas são inúmeros os pesquisadores de tendências, futuristas e especialistas de diversas áreas que opinam sobre os possíveis cenários pós-pandemia e a maioria deles concorda em pelo menos um ponto: haverá mudanças. Na Europa, por exemplo, já se fala em uma volta a uma nova normalidade. A professora da Escola de Negócios da Universidade de Nova York, Amy Webb, confirma: “A vida depois do vírus será diferente”.
Fato é que os efeitos da pandemia devem durar pelo menos dois anos, já que, segundo a Organização Mundial da Saúde, devem ser necessários no mínimo 18 meses para haver uma vacina efetiva contra o Covid-19.
Além disso, muitos estudiosos acreditam que a experiência pela qual estamos passando será um ponto de inflexão na história mundial, um marco na mudança de hábitos e comportamentos. Lilia Schwarcz, professora da Universidade de São Paulo e de Princenton, nos EUA, explica esse ponto de vista:
“[O historiador britânico Eric] Hobsbawm disse que o longo século 19 só terminou depois da Primeira Guerra Mundial [1914-1918]. Nós usamos o marcador de tempo: virou o século, tudo mudou. Mas não funciona assim, a experiência humana é que constrói o tempo. Ele tem razão, o longo século 19 terminou com a Primeira Guerra, com mortes, com a experiência do luto, mas também o que significou sobre a capacidade destrutiva. Acho que essa nossa pandemia marca o final do século 20, que foi o século da tecnologia. Nós tivemos um grande desenvolvimento tecnológico, mas agora a pandemia mostra esses limites”.
De qualquer forma, é evidente que as mudanças que estão por vir não acontecerão do dia para a noite, e dependerão de todos nós: do comportamento da sociedade civil, da nossa compreensão sobre os acontecimentos, das atitudes das empresas, dos posicionamentos adotados pelos governantes, entre outros.
Mas já existem alguns sinais que nos permitem refletir sobre algumas das possíveis tendências pós-crise. Acompanhe a seguir 5 das principais apostas de especialistas sobre o assunto:
1 Solidariedade e diversidade
Na opinião da psicanalista e professora da Faap, Maria Homem, “o mundo é um só. Se tínhamos dúvidas disso, não temos mais. Isso vai mexer com nossa maneira de lidar com o outro. Ao longo da história humana, o planeta foi ficando cada vez menor. Com as conexões, passamos a formar um ecossistema único: todos temos relações de interdependência. Esse conceito, de uma casa comum, vai sair fortalecido da crise”.
Reconhecendo essa interdependência, diversos estudiosos acreditam que uma das tendências positivas pós-coronavírus deve ser o aumento da solidariedade. De acordo, por exemplo, com Pete Lunn, chefe da unidade de pesquisa comportamental da Trinity College Dublin, “as crises obrigam as comunidades a se unirem e trabalharem mais como equipes, seja nos bairros, entre funcionários de empresas, seja o que for… E isso pode afetar os valores daqueles que vivem nesse período, assim como ocorre com as gerações que viveram guerras”.
Corroborando a visão de Lunn, o cientista político e economista Bruno Paes Manso afirma: “temos visto uma mobilização intensa pelas redes sociais nas periferias e em favelas como Paraisópolis e Morro do Alemão, onde a população se articula para garantir a todos o acesso a produtos básicos, como sabonete e mantimentos. A solidariedade, esse fortalecimento de laços nas comunidades, é uma consequência positiva deste momento de crise”.
Enquanto isso, Patrícia Santos, fundadora e CEO da EmpregueAfro, consultoria focada em diversidade étnica, comenta: “Tenho conversado bastante com clientes e com empresas que querem investir em diversidade, e este período de isolamento e coronavírus está fazendo com que as pessoas reflitam bastante sobre a humanidade e a relação com o outro, o que é positivo para a temática da diversidade, para que as pessoas desenvolvam ainda mais a empatia e um sentimento humanitário”.
Portanto, como expressado pela fundadora da Comunidade Zen Budista do Brasil, monja Coen, após toda essa experiência, “quem sabe possamos despertar a capacidade de compartilhar, colaborar, cooperar?"
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2 Novos modelos de negócio
De acordo com a vice-presidente de vendas, marketing e operações da Microsoft América Latina, Paula Bellizia, “a pandemia acelerou a adoção de novas tecnologias”. Na opinião da especialista, “o uso de videoconferência e ferramentas de trabalho colaborativo tem ajudado empresas, instituições de ensino, ONGs e governos a dar continuidade a seus negócios. Depois de superarmos este momento tão desafiador, sentiremos algumas mudanças fundamentais em nossa vida: sairemos mais conscientes da importância da conexão genuína e da empatia entre as pessoas e olharemos de uma nova maneira para o potencial da tecnologia como habilitadora de negócios, de aprendizado e para promover o bem”.
Nesse sentido, vale observar as apostas da plataforma global de tendências Trendwatching, que sugere uma provável elevação do número de negócios por meio de comércio eletrônico, mesclando-se com o entretenimento (o que eles chamam de shopstreaming); assim como a expansão do comércio automatizado (A-commerce), potencializada pelo desenvolvimento da Inteligência Artificial; e uma exploração ainda maior dos assistentes digitais e chatbots, que podem, inclusive, assumir a forma de personagens digitais.
Tudo isso indica a ampliação dos negócios online. A exemplo das lives de shows e das visitas virtuais a museus que já vêm acontecendo, os mercados de cultura, esportes e viagens são alguns dos que devem apostar cada vez mais nas experiências imersivas online, aproveitando-se de tecnologias já em desenvolvimento, como a realidade aumentada, a geolocalização, entre outras.
Já no caso de negócios físicos, a WGSN – um dos maiores bureaus de pesquisa do mundo – comenta que “as empresas precisam criar estratégias de marketing e varejo (na loja), capazes de aumentar a sensação de segurança e bem-estar e de promover a tranquilidade das pessoas”, como por exemplo, reduzir a aglomeração e facilitar o acesso a produtos de higiene em espaços compartilhados como coworkings, restaurantes, cafeterias e academias.
Seguindo essa linha de pensamento é que o futurista Rohit Bhatgava indica, entre outras tendências, a multiplicação do que ele chama de “restaurantes fantasmas”, referindo-se a estabelecimentos de alimentação que funcionam apenas com modelo de entrega (delivery).
Portanto, uma das grandes tendências pós-pandemia diz respeito à remodelação de algumas empresas e ao surgimento de novos modelos de negócios, adotando cada vez mais a tecnologia e o universo online como aliados.
3 Novos conhecimentos
Dando certa continuidade ao ponto anterior, a investidora-anjo e sócia-fundadora da G2 Capital, Camila Farani, comenta: “Apesar do cenário sofrível e desafiador, vejo a possibilidade de muito aprendizado para as empresas. As que não tinham canais diretos com seu cliente, por exemplo, vão ser obrigadas a sair da zona de conforto, e isso naturalmente mudará a percepção das coisas. Depois de um período inicial de choque, os empreendedores começam a pensar em como lidar com o problema atual e estabelecer prioridades para criar um caminho que traga resultados para o futuro”.
Mas não são apenas as empresas que devem aprender com o momento atual. Como bem observa o jornalista Clayton Melo, em reportagem do El País, “num mundo em constante e rápida transformação, atualizar seus conhecimentos é questão de sobrevivência no mercado. Mas a era de incertezas aberta pela pandemia aguçou esse sentimento nas pessoas, que passam, nesse primeiro momento, a ter mais contato com cursos online com o objetivo de aprender coisas novas, se divertir e/ou se preparar para o mundo pós-pandemia. Afinal, muitos empregos estão sendo fechados, algumas atividades perdem espaço enquanto outros serviços ganham mercado”.
E não são somente os novos conhecimentos profissionais que devem ganhar espaço. A chefe de cozinha Rita Lobo comenta, por exemplo, que “para quem não sabe cozinhar, a quarentena oferece a oportunidade de aprender, ganhar autonomia e não depender do delivery nem dos produtos ultraprocessados”. A plataforma Trendwatching corrobora essa visão apontando que, devido ao maior tempo que passam conectadas online, muitas pessoas “abraçarão plataformas que as conectem com professores, especialistas e mentores em sua busca para aprender novas habilidades”.
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4 Educação e trabalho à distância
Tendo em vista que as pessoas passam a buscar cada vez mais conhecimentos de forma online, a educação à distância (EaD) deve se expandir de forma acelerada. Nesse contexto, outra grande tendência pós-crise apontada pela Trendwatching é o surgimento de novas plataformas digitais educativas, incluindo quase sempre a figura dos mentores virtuais – professores e especialistas em diferentes assuntos e habilidades.
Seguindo lógica similar, é provável também que o home office (ou trabalho remoto) acabe ganhando maior espaço no mercado. Antes da crise essa ideia de trabalhar desde casa (ou desde qualquer outro ponto com conexão) já era realidade para alguns freelancers e profissionais liberais. Mas durante o período de confinamento essa ideia ganhou maior impulso, já que pode evitar que os trabalhadores estejam em espaços de grande aglomeração, além de trazer certa economia e, em alguns casos, maior produtividade, para as empresas. A possível confirmação desses bons resultados pode fazer com que algumas companhias adotem uma maior flexibilidade em termos de horários e locais de trabalho de seus funcionários.
Paula Bellizia, da Microsoft, corrobora essa ideia, opinando que, após o período de crise, “as empresas terão a certeza de que, mesmo à distância, é possível contar com a tecnologia para que as equipes continuem produzindo e trabalhando em colaboração remotamente, com agilidade e eficiência”.
5 Menos é mais
Os impactos financeiros associados à pandemia, por si só, já devem ser motivos para que as pessoas comecem a repensar seus hábitos de consumo com a intenção de economizar. Como afirmou o Copenhagen Institute for Futures Studies, a ideia de “menos é mais” deve passar a ser um guia para uma quantidade cada vez maior de consumidores.
A questão é que essa noção só vem a reforçar um movimento que já vinha acontecendo, representado por vertentes como a Economia Compartilhada, a Economia Solidária, o Consumo Consciente e o próprio Cooperativismo.
Como afirmou a pesquisadora de comportamento e tendências Sabina Deweik, “o acesso e o consumo colaborativo em todos os setores desde o transporte, os bens de consumo, os serviços ou ainda os setores mais tradicionais, surgem para que possamos aprender que os recursos são suficientes e que todos nós podemos usufruir de uma vida plena e próspera, sem qualquer privação. Como nos diz uma das leis da abundância: 'A verdadeira fonte de abundância do ser humano é a sua criatividade ilimitada’”.
Somado a isso, o escritor, produtor e apresentador Marcelo Tas afirma também que “agora não é mais opcional viver num mundo sustentável. Estamos passando por uma prova duríssima, que vai nos obrigar a reinventar processos, redesenhar trajetórias e produzir com menos desperdício”.
Portanto, a atual crise pela qual todos estamos passando pode até ser encarada como uma oportunidade, para refletirmos sobre nossas prioridades, nossos hábitos, nossos negócios e nossas relações com o outro, e para aprender que, compartilhando e cooperando, a vida de todos pode se tornar muito mais leve e mais fácil.