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Já faz algum tempo que a produção e comercialização de produtos e serviços deixou de ser um processo linear, com fabricantes e vendedores em uma ponta e clientes na outra. Atualmente, é relativamente fácil perceber que a participação dos consumidores não se limita apenas ao papel de comprador. Em maior ou menor medida, os consumidores começam também a fazer parte dos processos de informação, de divulgação e até de produção. Já existem, inclusive, diversas marcas e instituições que incentivam a cocriação, adotando-a como um diferencial competitivo.
Os avanços na internet, na conectividade e na interação digital são alguns dos grandes responsáveis por essa mudança de paradigma. Hoje em dia, os consumidores já não precisam ser público de uma pesquisa de satisfação para expressar suas opiniões sobre uma marca. Podem publicar em suas próprias redes, compartilhar imagens e outras informações de seus produtos preferidos, tornar-se defensores (ou acusadores) de determinadas marcas. E por que, então, não envolvê-los também na criação e/ou produção desses bens ou serviços?
A reflexão sobre essa questão tem dado origem a distintas designações. No âmbito informático, por exemplo, já são bem conhecidos os softwares livres, com licença de código aberto (open source) que permitem a análise, modificação e distribuição gratuita desses produtos por parte dos consumidores.
A depender da forma em que essa criação coletiva é realizada, há também autores que a designam como descentralização radical, inovação aberta, crowdsourcing, cocriação, peer production ou colaboração em massa, entre outros conceitos.
Só que essa tendência já está indo muito além da teoria. Seja como modelo de negócio ou como ferramenta de diferenciação, várias empresas já começaram a testar e adotar modelos de produção que contam com a participação ativa de seus consumidores.
Redução de custos e de riscos, aumento do potencial criativo e da personalização são algumas das vantagens comumente apontadas por quem aposta em modelos do tipo.
Não é à toa que as plataformas de cocriação são cada dia mais populares. Quer conhecer algumas delas? Sabia que você também pode participar de negócios assim? Sabia que existem até modelos mais cooperativos de criação coletiva em que todos saem ganhando? Confira:
Criação coletiva de roupas e calçados
Criada no ano 2000, a marca norte-americana Threadless foi uma das primeiras plataformas de cocriação no setor de bens de consumo. O negócio começou com a produção de camisetas e, atualmente, já se expandiu para uma linha completa de roupas, acessórios e decoração.
A ideia é simples: qualquer usuário pode enviar sugestões de estampa e de design, as quais são submetidas à votação dos demais usuários. As peças mais votadas são, então, produzidas e vendidas, sendo destinada aos criadores uma porcentagem pré-combinada dos resultados.
Criada pelo brasileiro Alfredo Orobio, em 2015, a plataforma AwaytoMars funciona de maneira similar. Após registrar-se no site e aceitar os termos de uso, qualquer usuário pode submeter projetos fashion à votação, assim como comentar e propor adaptações em projetos já postados por outros usuários.
O caso da plataforma brasileira Soupop também é parecido. Só que a avaliação das peças a serem fabricadas fica por conta da equipe da marca. E as peças só são realmente produzidas quando existe uma demanda de compra.
Enquanto isso, a Moda Co concentra-se na criação coletiva de calçados. Nesse caso, são as empresas calçadistas que lançam desafios no site, abertos a propostas dos usuários. Os usuários com propostas melhores avaliadas (pela empresa e pela comunidade do site) recebem prêmios pré-estabelecidos (entre R$ 700 e R$ 1,8 mil).
Automóveis criados coletivamente
Em 2010, em comemoração aos 30 anos da Fiat no Brasil, a marca apresentou, no Salão do Automóvel de São Paulo, o Fiat Mio – carro-conceito criado com a colaboração de usuários de quase 160 países.
Na época, a marca disponibilizou uma plataforma para receber sugestões do público e discutir questões de ergonomia, design, materiais, segurança, propulsão, etc., além de reunir comentários feitos em redes sociais. No total, foram cerca de 12 mil pessoas engajadas no projeto, que foi registrado sob licença Creative Commons.
Só que a Fiat não foi a primeira a adotar essa ideia e o Fiat Mio não chegou a ser realmente produzido para vendas. No ramo automotivo, a pioneira na criação coletiva foi, na verdade, a norte-americana Local Motors (LM Industries) – "uma empresa de mobilidade terrestre, que acredita na colaboração aberta e na cocriação”, como define a própria companhia.
Fundada em 2007, a Local Motors dedica-se à fabricação de projetos de código aberto (principalmente veículos), operando com microfábricas modulares, implantadas segundo as demandas do mercado.
Segundo Greg Haye, vicepresidente de gerenciamento de produtos, o modelo 4x4 Rally Fighter, lançado pela marca em 2009, foi o primeiro carro cocriado do mundo, do qual chegaram a produzir-se cerca de 2.000 unidades.
De forma similar às plataformas de criação coletiva de moda mencionadas, a Local Motors também mantém uma ferramenta online para a integração da comunidade, a Launch Forth, onde a marca lança desafios – com prêmios pré-estabelecidos – para receber propostas criativas de designers e engenheiros. Os próprios usuários votam para eleger as melhores propostas e também podem contribuir com sugestões adicionais.
Vale dizer que a marca também é responsável pelo primeiro veículo mundial impresso em 3D – Strati – e pelo primeiro ônibus autônomo elétrico, também feito em modelo de cocriação – Olli.
Criação coletiva de jogos
Reconhecendo o potencial do crowdsourcing, em 2008, a LEGO lançou sua própria plataforma de cocriação, a LEGO Ideas. No site, além de sugerir ideias de novos produtos para aprovação da empresa e da comunidade de usuários, também é possível participar de desafios e de atividades lançados pela própria companhia.
O kit LEGO personalizado do jogo Minecraft foi uma dessas ideias sugeridas por usuários da plataforma. Tendo atingido mais de 10.000 votos da comunidade participante do site, a proposta foi adotada pela empresa e posteriormente expandida para uma linha completa de produtos.
Mais recentemente, em fevereiro deste ano, a Media Molecule – desenvolvedora de jogos – apresentou uma ideia ainda mais ousada: Dreams, uma plataforma social de criação de games para PlayStation 4.
Além de conhecer a história de Art – personagem criado pelos desenvolvedores – e interagir com seus sonhos (dreams), os usuários do PS4 também têm ferramentas para criar seus próprios jogos dentro da plataforma, assim como músicas e animações. É possível ainda disponibilizar suas criações para que outros usuários possam jogar com elas e também assistir ou jogar criações de outros usuários.
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Desenvolvimento tecnológico coletivo
Criada em 2007, a GitHub é uma plataforma de hospedagem de códigos-fonte, que permite aos usuários cadastrados contribuírem com a criação ou aperfeiçoamento de projetos privados e/ou open source. WordPress, GNU/Linux, Atom e Electron são alguns dos projetos mundialmente conhecidos que se pode encontrar aí.
Chegando a registrar mais de 36 milhões de usuários ativos, a GitHub é amplamente utilizada por programadores para divulgar seus trabalhos e para que outros programadores colaborem com o projeto.
Outro bom exemplo é dado pela Handl, plataforma em que qualquer usuário pode cadastrar-se para colaborar com o desenvolvimento coletivo de Inteligência Artificial (IA). Nesse caso, o usuário nem precisa ser programador, já que a colaboração proposta pela companhia consiste simplesmente em rotular imagens ou classificar textos simples para evitar erros de coletas de dados por IA.
Plataformas cooperativas
A partir dos exemplos apresentados até aqui é possível perceber, na prática, como os consumidores têm assumido novos papéis na criação, produção e desenvolvimento de bens e serviços, sobretudo através das plataformas de cocriação.
Como visto, em vários casos, os consumidores participantes podem até ter algum tipo de recompensa ou prêmio por sua colaboração no processo criativo. Contudo, é visível também que eles não são os principais beneficiários da produção.
Situação distinta ocorre no caso das cooperativas de plataforma – comunidades online que oferecem bens e/ou serviços, seguindo os princípios cooperativistas.
O jornalista Gideon Rosenblatt esclarece: “Imagine por um momento que os motoristas da Uber, e não os acionistas, fossem proprietários da Uber”.
Ou seja, no caso das plataformas cooperativas, a criação/produção é coletiva e o ganho também é de todos (e não apenas de quem tem suas ideias selecionadas ou de quem contribui mais).
Quer alguns bons exemplos? Conheça a Fairmondo – cooperativa digital de comércio online; a Loconomics – cooperativa de profissionais autônomos; e a Stocksy – cooperativa de fotógrafos e videomakers.